Nestes Espaços, a Memória sublima a História. Sim! Pois a Memória é sentimental, lúdica, romântica - na maioria das vezes só se apresenta na oralidade e nos trejeitos; se distingue da História por não apresentar a armadura do cientificismo, da racionalidade e do método.

Um outro ponto que gostaria de tocar, trata-se da questão da limitação a institucionalidade. É um dos principais problemas enfrentados pela Câmara Temática de Espaços de Memória, devido principalmente sua composição ser em sua maior parte de representantes de organismos submissos ao Poder Público, nada contra isso.
O problema que se averigua é que muitos dos representantes parecem só querer participar das reuniões, se junto disso, vier um ofício do Chefe, do Secretário, do Pajé determinando que tal funcionário deva participar de tal reunião. Isso me fez lembrar de um grande amigo, bom de prosa, morava próximo a casa de minha mãe em Porto Velho.
Durante a ditadura militar, meu vizinho acabou se envolvendo com grupos guerrilheiros do Pará, uma história bem longa, que teve como ponto de partida a publicação de um “despretensioso” pasquim, distribuído por ele nos finais de tarde nos corredores da USP, e alguns anos depois, teve como desfecho, a perda de algumas de suas unhas, cruelmente arrancadas por “cães de guarda” do DOPS.
Uma vez ele brincara comigo, na época estava ingressando na Força Aérea, ele falou: “garoto, tome cuidado, você não sabe o mal que faz para o cérebro passar vários anos falando: sim senhor! Não senhor! Positivo operante senhor!” Agora entendo a preocupação.
A instituição de certa forma mecaniza o funcionário - este último passa a fazer apenas aquilo para que fora programado, estático, mórbido. Chegando ao ponto de ter que emitir uma C.I. para poder fazer as necessidades fisiológicas (isso tudo é claro se trata de uma brincadeira).
Acho que essa barreira da mecanização e da responsabilidade estritamente condicionada ao papel que você desenvolve em uma instituição deve ser vencida. Deve-se romper à lógica do “enquanto for sacristão tratarei apenas de tocar os sinos”.

Mas isso não acontecerá enquanto não formos encorajados a encarar estes Espaços como parte do nosso agir. Se ele não nos representa, não é a projeção de nossa memória, de nossos saberes e fazeres, devemos trabalhar para que estes espaços passem por um processo de crítica e que mudem em algum aspecto, de preferência em direção a vivência da comunidade.
Como anteriormente havia falado, o pensar de uma Teoria Histórica para a constituição de um Espaço de Memória é imprescindível. Temos que ter em mente a que se destina aquele espaço: o objetivo é valorizar as lutas populares? É amplificar a voz dos oprimidos, dos esquecidos, dos negros, das mulheres ou das crianças? É dar vasão aos vários discursos formadores de uma sociedade?
Essas perguntas precisam ser respondidas no ato da constituição do Espaço, até porque, é bom que se tenha em mente que o estado, grosso modo, sabe muito bem a que se destina um Espaço de Memória, no caso, ao engrandecimento personalístico das autoridades e todos os participantes que possuem importância direta na constituição e na manutenção do monopólio do poder exercido pelo estado, e a hierarquia que o mantém.
Estamos aí, o Leviatã sentado conosco. É hora de dialogar, é hora de se proporem alternativas e se desvencilhar de todo aparato burocrático deste monstro chamado estado. Como o faremos?
Através da participação direta, através do assumir de nossas responsabilidades como atores protagonistas de um processo em que a população deixa de ser objeto das políticas de desenvolvimento implantadas como um todo, e passa a ser a responsável pelo planejamento, organização e execução de políticas, criadas e mantidas pela própria população - sem descartar a presença do estado, que surge como mediador e financiador das demandas da comunidade.
Como outrora mencionado, a idéia não é se desfazer, ou, destruir a História Oficial perpassada pelo estado, mas mostrar nas escolas, nos Espaços de Memória que, a História Oficial não é a única versão da história.
Assim, quando um guri chegar ao Palácio Rio Branco, ele ficará sabendo da importância do Barão, do Revolucionário, do Tratado, mas ficará sabendo também do sangue escondido debaixo daquele Palácio cheio de tanta pompa: o sangue do nordestino, do seringueiro, do povo humilde.
Quando chegar também ao Memorial dos Autonomistas, falar-me-ão dos líderes autonomistas, da luta para o reconhecimento do Acre como estado, mas como a Fátima Almeida ponderou genialmente no seu artigo, falar-me-ão também dos interesses das oligarquias locais neste processo.
A idéia definitivamente é de humanizar os espaços, é olhar para o quadro do Jorge Nei, do Mesquitão, do Dantinhas, do Flaviano, e não encará-los como seres supranaturais - pois isto sempre foi usado para definir os Heróis e os Vilões -, visioná-los como seres humanos, com virtudes, com defeitos, com interesses; para que assim, os processos de mudança de uma sociedade não sejam dignificados a uma pessoa, ao herói...
Esta talvez seja minha maior rixa contra os Heróis - por aparentarem ser supranaturais, às vezes passam à idéia de que todo o processo de construção, ou de mudança de uma determinada conjuntura, fora feito por uma única criatura, um gênio. Isso de certa forma apaga a participação da base que deu retaguarda para a mudança, é o que o Bertolt Brecht transpareceu em um dos seus melhores poemas...

Falava algo próximo de: durante as batalhas, lideradas pelos grandes generais, o que seria dos exércitos sem os cozinheiros para alimentá-los? E Carlos Magno, mantinha um gigantesco império, sozinho? A União Soviética, durante o processo de conclusão da segunda guerra e invasão do Bunker alemão, foi orquestrada pelo camarada Stálin, e os 20 milhões de soviéticos mortos em batalha?
Vamos parar de jogar a sujeira para debaixo do tapete. Deixais vir à tona a contradição, pois dela surge à tônica da dialética que embasa a mudança. Se é que disto, algo se pode aproveitar, fica a reflexão.
*Isaac está cadastrado na área de Patrimônio Cultural
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